Eu tinha 7 anos quando minha vó, mãe da minha mãe, morreu. Tenho algumas lembranças dispersas da vida com ela. Os domingos que íamos à sua casa. Os domingos que ela vinha à nossa. Ela não era muito dada a crianças. Fazia de tudo pra nos manter fora da casa, brincando no quintal. Se irritava fácil com aquele bando de crianças entrando e saindo da cozinha, da sala, do quarto... Era conhecida como
Dona Conguinha, embora na minha certidão de nascimento minha avó materna se chame Eutália Oliveira Alcântara.
No dia que ela morreu estávamos todos na casa da minha tia Gilce. Foi a primeira vez que alguém tão de perto morria. Pra mim, na verdade, foi a primeira vez que a morte fez sentido. Foi de repente. Ela sofreu um infarto. Tinha apenas 62 anos. Fui ao enterro e fiquei parado um bom tempo olhando pro seu corpo inerte no caixão. Eu tinha a sensação de que se ela quisesse, ela poderia se levantar. Era só fazer força. Pensava cá comigo: "Tá aí deitada porque quer". Acho que não entendia como se morre.
Depois disso, lembro-me da morte de um menino que morava no meu prédio. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos e ele uns 4. Se chamava
Glauber e sua mãe se chamava Raquel. Sua família se dava muito bem com a minha. Lembro de uma vez que sua mãe me pediu que o levasse até em casa. Fui conduzindo-o pelas escadas. Ele usava botas ortopédicas. Tinha um cabelo comprido e usava um rabo de cavalo. Enquanto subíamos as escadas do prédio, eu o assustava dizendo que tinha um bicho no final do corredor. Ele chorava e eu desmentia. Até assustá-lo novamente no corredor seguinte. Ficou doente e morreu. Não por minha causa. Já era mesmo doentinho. Tão menino. Fui ao enterro e me lembro de suas meias brancas e sua tia acariciando-lhe os pés. Não achava que estivesse ali deitado porque quisesse. Mesmo vivo, não parecia ter força pra morrer.
Quando eu estava na segunda série, morreu um menino da minha escola. Se chamava
Orlando e era namorado de uma menina da minha sala que se chamava Adriana (como alguém que está na segunda série já tinha namorado?!). Era uma segunda-feira. Cheguei na escola e estava um alvoroço. Finalmente haviam encontrado o corpo do menino. Ele saiu para pescar na semana anterior e se afogou. O corpo ficou desaparecido por alguns dias. Rumamos todos da escola para acompanhar o resgate. Ilha do Pontal. Lembro de ter visto seus pés quando os caras do rabecão passaram com seu corpo coberto por plástico preto dentro de um caixão de aço. Não o conhecia.
Um tempo depois, não mais que dois anos, morreu meu
tio Jonjoca, irmão da minha mãe. Eu tinha 10 anos, ele 42. Novo, mas a essa altura já tinha 9 filhos. Morreu do nada, diríamos. Estava internado, e quase de alta, por conta de uma úlcera. Morreu num sábado de maio, dia 13. Estávamos em casa e meu primo Claudinho foi quem nos trouxe a notícia. Lembro do choro da minha mãe. Lembro também de ter ido ao velório. Fomos juntos eu, mamãe, tia Gilce e tio Joel. Lá chegando, seu corpo estava no caixão ainda sem flores. Vestia uma bermuda jeans. Era um tio legal. Adorava contar piadas e zombar das pessoas. Lembro de tia Dilma ornamentando o caixão. Mas não fiquei para o sepultamento.
Quando eu estava na sétima série, morreu
Marta, uma menina da minha sala. Ela ficou doente e faltou muitas aulas. Alguns amigos mais chegados fomos visitá-la em casa. Ela era uma menina tímida e muito pobre. Não era tão boa aluna. Era do meu grupo nos trabalhos, mas nunca aparecia em nossos encontros. Talvez por causa da saúde. Soubemos que foi internada por causa de uma rubéola. As férias do meio do ano acabaram e ela não voltou às aulas. Alguns de nós fomos ao hospital visitá-la e levamos flores. Não nos deixaram entrar. No mês de agosto ela chegou a aparecer na escola algumas vezes. Mas depois voltou pro hospital e morreu no dia 15 ou 16 de setembro. Toda a sétima série foi dispensada para ir ao seu sepultamento. Marta da Silva Pinna, 14 anos. Sua mãe parecia profundamente abatida, mas chorava em silêncio. Isabela, uma menina da turma que mal conhecia Marta, estava histérica. Chorava e desmaiava e ninguém entendia a razão. O dia seguinte na escola foi estranho. A mesa dela vazia. Ninguém falava no assunto.
Eu morava numa vila. Eram quatro casas. Exatamente na casa ao lado morava uma senhora que tinha dois filhos: Luciana e Otávio. Não demorou muito pra que
Tavinho e eu nos tornássemos grandes amigos. Passávamos muito tempo juntos, ora na minha casa, ora na casa dele. Às vezes eu pedia pra minha mãe levá-lo aos nossos passeios. Ele ia. Ele era bonito e as meninas gostavam dele. Minha irmã era uma delas. Acho até que namoraram. Um dia, Tavinho e eu brigamos feio num jogo de futebol. Nunca mais nos falamos. Sua família se mudou da vila. Eu o via de vez em quando na rua. Quando ele tinha 17 anos, ficou doente, muito doente, hepatite. Foi internado no Antônio Pedro. Fugiu do hospital. Morreu um tempo depois. Menino ainda. Não me conformei em vê-lo tão jovem naquela morte. Sua mãe era o próprio sofrimento em pessoa. E eu lamentei ter brigado com ele por razões tão idiotas.
Quando eu tinha 27 anos experimentei a mais viva de todas as mortes.
Tia Célia. Minha quase-mãe. Ela tinha só 62 anos. Ficou seriamente doente aos 61. Mesmo percebendo o que estava acontecendo, fui pego de surpresa. "Tia Célia morreu" era uma frase que nunca queria ter pronunciado. Deixou um vácuo. Um silêncio. Sua morte dispersou muitas histórias. Foi no ano 2000. Eu sempre desconfiei que algum mundo ia acabar no ano 2000.
E naquele mesmo ano foi-se
Janderson, um amigo muito querido, casado com Allynne. Ele tinha só 29 anos. Foi trabalhar, passou mal, foi pro hospital e morreu. Ah, como era bom bater papo com ele. Culto, leitor voraz, amante de boa música e dono de bela voz. Eu soube de sua morte uma semana depois. Foi tudo muito rápido e Allynne não conseguiu avisar. Sem tê-lo visto morto, fico com a sensação de que viajou pra longe.
Então morreu
Vovó Maria. Foi em dezembro de 2005, um dia antes de completar 103 anos. O sepultamento foi no dia do seu aniversário. Não me lembro de nenhum dia em que vovó Maria estivesse doente. Fora a lucidez consumida pelo tempo, era uma velhina saudável. Aos 100 anos, ainda era possível encontrá-la lavando louças ou roupas. Como era bom conversar com ela. Me contava muitas histórias sobre minha infância. Sentar ao lado dela era como viajar no tempo. Tive a honra de dirigir o culto em seu funeral e, junto com todos os presentes, entoar uma canção que ela vivia cantarolando, cujo refrão dizia Precioso pra mim é Jesus/Precioso pra mim é Jesus/Eu confesso na vida e na morte/Que tudo pra mim é Jesus.
Fernando também era um amigo querido. Ele e Clarissa se casaram logo depois do diagnóstico do câncer. Ficaram casados 3 anos. Quase não nos encontrávamos. Era alegre e manso, bonito, jovem e muito amado pela Clarissa. Mas estava morrendo. Queria muito viver, mas não ousava reclamar da morte. Em 18 de agosto de 2006, completou 30 anos. Lucélia e eu fomos à festa, numa pizzaria da Ilha. Lá, reclamou comigo do meu sumiço e disse que o havia abandonado. Doeu aqui dentro. Então resolvemos marcar de passar uma tarde juntos no dia 28, era quando eu podia. Cheguei à sua casa, mas não estava mais. Tinha ido pro hospital no dia anterior, e morreu no dia seguinte. Ah, como esperei pelo dia 28...
E há quase 3 meses, foi a hora de
Lúcia Melo de Jesus. Era de Jesus mesmo. Nos conhecemos, creio eu, em 1995, quando eu ainda era estudante. Sua irmã, Sônia, fazia parte do Alfa & Ômega e envolveu Lúcia conosco. Ela mergulhou. Ia a todos os Congressos. Foi conosco ao Panamá, Cabo Verde. Sempre externou o apreço que sentia por mim. Adorava servir e reclamar. Me divirtia muito com ela. Depois de um tempo foi morar nos Estados Unidos e por lá ficou vários anos. Voltou ano passado, se não me engano. Nos vimos apenas uma vez desde que voltou. Em 19 de janeiro me mandou um email dizendo que estava muito feliz que eu ia me casar e querendo saber onde estava a lista de presentes. Em 19 de fevereiro Sônia me mandou um email comunicando seu falecimento. Pensei comigo: "Deus, por favor, deixa as pessoas viverem!"
Certamente, houve outras perdas ao meu redor. Outros tios, outros avós, conhecidos... Sei lá porque menciono essas e não aquelas. O escritor israelense Amós Oz diz que "vivemos até o dia em que morre a última pessoa que se lembra de nós". Então, se ainda não morri eu, também não morreram eles.
E na verdade, nunca morrerei eu, pois Jesus ainda vive... e se lembrou de mim.
"Porque se vivemos, vivemos para o Senhor. Se morremos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor." (Romanos 14:8)