terça-feira, 9 de setembro de 2008

Míope de Coração

Aos 15 anos descobri que era míope. Pra quem não sabe (duvido que alguém não saiba), miopia é um distúrbio ocular que impede de se ver com nitidez objetos distantes. É ter visão curta, pra ser mais objetivo. É só enxergar um palmo à frente do nariz, dependendo do grau que se tem, pra ser mais direto.

As lentes dos meus primeiros óculos eram de um grau e meio. "Como esse menino conseguiu viver tanto tempo com toda essa miopia?", espantou-se o oftalmologista depois da constatação. Quando pus os óculos pela primeira vez, mal podia acreditar no que estava vendo. A resolução do mundo era muito melhor do que eu pensava... Um milhão a mais de megapixels!

Já tinha até me esquecido que era possível ver São Jorge montado em seu cavalo lá na Lua. Vi que era possível enxergar o letreiro do ônibus antes de me dar conta que o havia perdido... Era possível ver o sorriso do amigo que vinha ao longe... Era possível ver o que estava escrito no quadro-negro mesmo estando sentado ao fundo da sala! Eu podia enxergar a sujeira nas unhas dos meus pés. Meu Deus, que mundo novo!

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que eu não era míope. E nesse tempo o céu tinha estrelas, as nuvens tinham forma de bichinhos. Era uma época em que eu não precisava me preocupar com o letreiro dos ônibus nem com a sujeira das unhas... E à medida que fui crescendo, o mundo foi embaçando. Acho que pensava que era próprio do crescimento e fui me acostumando a não ver muito longe. Pra mim, o mundo era mesmo assim e todos viam exatamente como eu.

Quando alguém dizia ser capaz de enxergar além do meu alcance eu não acreditava ou passava a considerar tal pessoa anormal. Só passei a acreditar nas pessoas quando comecei a usar óculos. Eles são meu companheiro inseparável há 21 anos, e sem eles não enxergo um palmo à frente do nariz. Suas lentes atualmente têm seis graus e meio. Sem eles fico limitado ao meu umbigo, ao meu quintal, ao próximo passo...

Recentemente, porém, descobri que sofro de outro tipo de miopia - a do coração. Não posso precisar o grau, mas não é pequeno. Ela faz meus sentimentos parecerem confusos. Macula minha perspectiva da vida e minha visão de Deus. Ao mesmo tempo em que me faz acreditar que o que vejo é a realidade e o que outros enxergam é distorção. Meu enganoso coração pensa que é são e sábio. No entanto, a Bíblia diz que ele sofre de uma doença incurável. ¹

Antes de me dar conta de que era míope de coração, meu mundo era preto ou branco, as pessoas eram boas ou más, minhas convicções mais bíblicas do que a dos outros, e minhas certezas inabaláveis; ganhar e perder, viver e morrer, duvidar e crer, liberdade e fé eram antônimos; amor e prazer, sinônimos. Enxergava um Deus previsível, melindroso e desapontado.

Aos poucos fui entendendo que tudo que sei de Deus é caricatural. É Ele, eu sei. Mas não é tudo que Ele é. Meu míope coração enxerga uma imagem embaçada, às vezes distorcida, e a única chance de conhecê-Lo melhor é chegando mais perto. De longe não vejo Seus olhos, não enxergo Seu sorriso e me privo das expressões de Seu rosto. Ficar perto é tudo que preciso.

Estar consciente dessa miopia não me cura, pelo contrário, a faz mais real. Porém, me ajuda a não precipitar as conclusões, a não julgar os demais corações e evitar as categóricas afirmações. Me faz crer na diversidade, amar as diferenças e reconhecer a necessidade do outro e a dependência do Único.

Para a miopia dos olhos existem os óculos. Para a do coração, apenas a constatação e a esperança. Constatação de que "Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho... Agora conheço em parte". E esperança de que "então, veremos face a face... conhecerei plenamente, da mesma forma que sou plenamente conhecido.

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que meu coração era cego. E nesse tempo não existia céu nem esperança...




Notas:
¹ Jeremias 17:9
² 1 Coríntios 13: 12